Fonte: exame.abril.com.br

Em 1950, um total de 3 bilhões de humanos viviam na Terra. Hoje, já somos 7 bilhões e em 2050 seremos 9,1 bilhões. Quando isso acontecer, teremos triplicado nossa espécie em praticamente duas gerações, o que coloca uma pressão inédita sobre os recursos naturais, em especial a água. Nas próximas três décadas, a ONU estima que a demanda hídrica mundial crescerá 30%.

Ao longo do século passado, grandes obras de infraestrutura hidráulica foram a solução adotada para suprir as necessidades de água dos centros urbanos e atividades industriais e agrícolas que cresciam a todo vapor. Reservatórios, canais de irrigação e estações de tratamento de água, porém, não são os únicos instrumentos de gestão de água à disposição. Em tempos de pressões crescentes sobre os recursos hídricos e incertezas climáticas, a solução pode vir da própria natureza.

No final dos anos 1980, o estado indiano do Rajastão enfrentou uma das piores secas de sua história. Ao longo dos anos seguintes, o trabalho realizado por uma ONG e comunidades locais para captar água da chuva e regenerar solos e florestas degradados na região montanhosa ajudou a elevar os níveis dos lençóis freáticos subterrâneos e a melhorar a produtividade das terras cultivadas.

Desde o final da década de 1990, a cidade de Nova York protegeu suas três maiores bacias hidrográficas e agora economiza mais de US$ 300 milhões por ano em custos de tratamento e manutenção de água.

Recentemente, a China deu o pontapé num projeto intitulado “Cidade Esponja” para melhorar a disponibilidade de água nas áreas urbanas. Até 2020, o país pretende construir 16 cidades-piloto com o objetivo de reciclar 70% da água da chuva através de uma maior permeabilidade, retenção e armazenamento no solo, e projetos de purificação de água e restauração de zonas úmidas.

Essas medidas, muitas que remontam a métodos ancestrais de manejo ambiental, são exemplos das chamadas “soluções baseadas na natureza” (NBS, na sigla em inglês). Em oposição à infraestrutura tradicional “cinza” das obras hidráulicas, soluções baseadas na natureza consistem na criação de “infraestruturas verdes”, baseadas na preservação ou reprodução das funções dos ecossistemas, e viabilizadas pela engenharia ambiental.

A presença e a extensão de vegetação em pastagens, de zonas úmidas (lagos, manguezais e pântanos que filtram descargas industriais, agrícolas e da mineração), a restauração de florestas e a proteção de bacias hidrográficas que abastecem áreas urbanas podem ser o foco de ações para melhorar a quantidade e a qualidade da água disponível.

Na edição 2018 de seu Relatório Mundial de Desenvolvimento da Água, a ONU defende o uso de soluções baseadas na natureza para a melhoria do suprimento e da qualidade da água e na redução do impacto de desastres naturais.

Apresentado nesta semana durante o 8º Fórum Mundial da Água, que acontece em Brasília, o relatório retrata os recursos hídricos não como um elemento isolado, mas como parte integrante de um processo natural complexo que envolve evaporação, precipitação e absorção de água através do solo.

Engenharia ecológica

No Brasil, é possível encontrar exemplos inspiradores, embora ainda incipientes, de soluções verdes aplicadas à gestão da água. Uma das principais iniciativas pela conservação de rios e nascentes, a Coalizão Cidades pela Água completa dois anos com avanços importantes. Liderada pela organização ambiental The Nature Conservancy (TNC), a iniciativa que surgiu em 2015 tem promovido ações de recuperação e conservação de áreas estratégicas para as fontes de água de metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Por meio da colaboração entre empresas globais, governos, ONGs e produtores rurais, a Coalizão já promoveu a conservação, restauração florestal e implementação de melhores práticas agrícolas ou de uso do solo em 30 mil hectares em todo o país. A iniciativa beneficia mais de 2,5 mil famílias nas cabeceiras das bacias hidrográficas onde atua e já ajudou a direcionar R$ 200 milhões em investimentos para a preservação de mananciais, incluindo fundos privados e públicos.

“Uma das principais mensagens da Coalizão é mostrar que ninguém sozinho vai dar conta dos desafios da água. Trazemos uma plataforma de ação coletiva, que coloca concorrentes, como Coca-Cola, Pepsico e Ambev, atuando em conjunto na mesma bacia hidrográfica, porque sem água não tem competição, não tem produção”, diz ao site EXAME o gerente Nacional de Água da TNC, Samuel Barrêto.

A articulação entres vários atores traz múltiplos benefícios, que se traduzem por exemplo no aumento da resiliência climática e medidas de mitigação. “Só pelo Código Florestal, temos a oportunidade de recuperar 22 milhões de hectares e organizar uma cadeia produtiva de recuperação de florestas que pode gerar milhares empregos”, destaca o representante da TNC, em referência à recomposição das Áreas de Proteção Permanentes (APPs) e a recuperação ou compensação da Reserva Legal das propriedades.

Uma das principais frentes de atuação do programa, segundo Barrêto, é o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), que recompensa financeiramente agricultores que se comprometem a preservar nascentes, mananciais e fontes de água em suas propriedades. Cerca de 21 milhões de reais foram aplicados em PSA ao longo dos dois anos da Coalizão.

Barrêto lamenta a falta de uma maior participação de médias e pequenas empresas nesse processo. “O desafio é maior nas empresas menores ou que não possuem a água como principal insumo. Grandes corporações têm análises mais aprimoradas do ponto de vista do risco e um entendimento mais avançado de que é preciso romper os muros da fábrica, atuar ao longo da cadeia produtiva e na bacia hidrográfica”, avalia.

Principal financiadora da Coalizão, a Ambev anunciou recentemente um passo além nesse trabalho com o estabelecimento de novas metas de sustentabilidade que devem ser atingidas até 2025.

“Dentre os novos objetivos, estamos nos comprometendo publicamente a melhorar de forma mensurável a disponibilidade e a qualidade da água para 100% das comunidades com as quais nos relacionamos em áreas de alto estresse hídrico”, diz ao site EXAME o vice-presidente de Sustentabilidade e Suprimentos da cervejaria, Rodrigo Figueiredo.

Questionado sobre oportunidades para as empresas como um todo avançarem nessa agenda, o executivo afirma que com “engajamento verdadeiro”, a estruturação de iniciativas socioambientais flui de maneira natural, mas reconhece que as oportunidades variam de setor para setor.

“Nossa principal matéria prima é a água, então para nós é natural que ela também seja nossa principal bandeira ambiental. Além disso, temos consciência do alcance que temos e assumimos como nossa responsabilidade aproveitar essa base para engajar o máximo de pessoas a compartilharem do nosso objetivo”, afirma.

A gigante das cervejas não está sozinha. Sua maior concorrente no mercado global, a Heineken vem desenvolvendo um projeto em parceria com a SOS Mata Atlântica de reflorestamento em uma fazenda de 500 hectares da empresa na cidade de Itu, no interior de São Paulo, onde fica a maior planta de produção da marca no Brasil.

Desde que a parceria com a ONG foi firmada, há dez anos — parceria esta que a Heineken manteve com a aquisição da Brasil Kirin em 2017 — já foram plantadas mais de 700 mil mudas na propriedade, incluindo espécies nativas, o que propiciou um aumento de 20% no volume de água subterrânea e de 5% no volume de água superficial nas áreas da companhia na cidade.

Atualmente, dois terços do volume de água consumida pela planta da cervejaria em Itu vêm da fazenda reflorestada. Em entrevista ao site EXAME, a coordenadora de sustentabilidade da Heineken Brasil, Beatriz Dias de Sá, conta que a existência desse projeto poupou a empresa de problemas de produção durante a crise hídrica que castigou São Paulo em 2014 e que atingiu em cheio a cidade de Itu.

“A produção não precisou parar nenhum dia e ainda foi possível doar água para a prefeitura atender hospitais e a população” lembra a executiva. “Considerando que mais de 90% de cerveja é água, quando olhamos um projeto capaz de aumentar a disponibilidade hídrica onde captamos, vemos um grande potencial de replicação”, afirma.

Fomentar parcerias também é o caminho encontrado pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) para recuperar a cobertura vegetal em áreas de APP no Sistema Cantareira. Segundo Mara Ramos, gerente do Departamento de Recursos Hídricos Metropolitanos da Sabesp, a medida colabora com a recuperação de matas ciliares, que protegem as bordas dos rios e nascentes, preservam a qualidade da água e dificultam ocupações ilegais.

Nos últimos dez anos, por meio do Programa Cinturão Verde Metropolitano, a Sabesp já plantou mais de 2 milhões de árvores no entorno dos sistemas Cantareira e Alto Tietê, recuperando principalmente áreas de proteção permanente. “Com o trabalho, a cobertura vegetal do sistema Cantareira em áreas da companhia passou de 61% para 75%”, diz a executiva ao site EXAME. Para acelerar o processo de recuperação, a Sabesp está buscando empresas que queiram fazer novas parceria e para isso disponibilizou 1,7 mil hectares para restauração ecológica no entorno do sistema Cantareira.

Uma conta difícil

No centro dos projetos de soluções baseadas na natureza, e da criação de infraestrutura verde, está o desafio de dimensionar a importância dos serviços ecossistêmicos. “É difícil mensurar os benefícios gerados pelos serviços ecossistêmicos, como o bem-estar humano ou seu valor relacionado à integridade e resiliência de ecossistemas, que são muitas vezes intangíveis”, ressalta Natalia Lutti, gestora da iniciativa Tendências em Serviços Ecossistêmicos (TeSE) do Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces) da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP).

Para o tomador de decisão empresarial, que se pauta por números e dados tangíveis e precisa de resultado rápido, as vantagens de investir em soluções baseadas natureza não são tão óbvias como as de investir em infraestrutura cinza, avalia Lutti em entrevista ao site EXAME.

Para mudar isso, a iniciativa TeSE tem se dedicado à construção de ferramentas de apoio à gestão empresarial para valoração de suas vulnerabilidades e impactos sobre os recursos naturais. Os pesquisadores trabalham junto com representantes das empresas para entender as relações das companhias com os ecossistemas, tanto de dependência quanto de impactos.

Uma das principais estratégias passa pela valoração monetária dos serviços ecossistêmicos, que embora não dê conta de todas as dimensões ecossistêmicas envolvidas, já que nem todas são passíveis de precificação, se revela um subsídio valioso para a tomada de decisão.

Com apoio desse programa, por exemplo, a Companhia Paranaense de Energia (Copel) resolveu em 2015 estimar em valores econômicos os benefícios do Programa Florestas Ciliares, que desde 2006 promove atividades de restauração florestal no entorno do reservatório da usina hidrelétrica Governador Bento Munhoz da Rocha Neto, situada no Rio Iguaçu, no Paraná.

Descobriu que, em 10 anos, a recuperação de matas ciliares resultou em um custo evitado com dragagens de R$ 50 milhões, através da prevenção de erosão pela regulação do solo, e R$ 9 milhões de externalidade positiva na regulação do clima global, pela remoção de toneladas de CO2 da atmosfera. Este e outros cases com empresas brasileiras de diversos setores estão reunidos no site do programa do GVces.

“Aprimorar as formas de mensurar os serviços prestados pelos ecossistemas, gerar benchmarking, sistematizar conhecimentos e divulgá-los são esforços necessários para se criar uma cultura empresarial mais aberta às soluções baseadas na natureza”, defende Lutti. Ainda que a matemática não seja tão clara ou fácil, uma coisa é certa — se trabalharmos com a natureza e não contra ela, só temos a ganhar.